Visitação eclesiástica na tradição reformada - Pr. Flávio Silva


Por Pr. Flávio Silva

O SISTEMA DE GOVERNO DAS IGREJAS REFORMADAS DO BRASIL E A PRÁTICA DA VISITAÇÃO
ECLESIÁSTICA O princípio do sistema de governo das igrejas reformadas do Brasil (de herança
reformada continental) é o de autonomia da igreja local. Autonomia (auto + nomos = AUTÓS, “próprio,
si mesmo” e NOMOS, tem o significado de “normas, leis”) “governo de si mesmo”. No sistema de governo
das IRB não há lugar para hierarquia, seja entre igrejas ou entre os oficias. A igreja é governada pelo
colegiado de oficiais (presbitério) composto de ministros da palavra, presbíteros e diáconos. Estes são
chamados por Cristo por meio da igreja para os ofícios. Cristo governa Sua igreja pelos oficiais.
Estas igrejas autônomas se unem em uma confederação de igrejas. A igreja local deve pertencer a uma
confederação para expressar a unidade do corpo de Cristo na forma institucional da igreja. Os crentes
são chamados a expressar sua unidade por meio de uma vida comum, chamados a permanecer juntos
na batalha da fé e expressar essa unidade em uma confissão comum.
Dentro da confederação de igrejas, cada igreja permanece autônoma. E a autoridade das assembleias
maiores (concílios regionais e sínodos gerais) é definida por acordo e promulgada num regimento que
deve ser respeitado e cumprido pelas igrejas. Mas essa autoridade é delegada pelas igrejas locais. São
as igrejas locais que realizam a obra de Cristo: pregação do evangelho, administração dos sacramentos
e exercício correto da disciplina cristã.
Este sistema reformado de governo da igreja é fundamentada na prática da igreja primitiva e definida por
canais da Grande Reforma Protestante do século 16.
A Visitação Eclesiástica funciona neste contexto eclesiástico.
1. Breve histórico da prática da Visitação Eclesiástica na igreja Cristã
A visitação eclesiástica tem suas raízes na tradição apostólica. Exemplos bíblicos:
a. Atos 9:32: “Passando Pedro por toda parte, desceu também aos santos que habitavam em Lida.”
b. Atos 15:40,41: “Mas Paulo, tendo escolhido a Silas, partiu encomendado pelos irmãos à graça do
Senhor. E passou pela Síria e Cilícia, confirmando as igrejas.”
c. Atos 15:36 “Disse Paulo a Barnabé: Voltemos, agora, para visitar os irmãos por todas as cidades nas
quais anunciamos a palavra do Senhor, para ver como passam.” d. Atos 16:4: “Ao passar pelas cidades,
entregavam aos irmãos, para que as observassem, as decisões tomadas pelos apóstolos e presbíteros
de Jerusalém.”.
e. As epístolas de Paulo aos coríntios, tessalonicenses e outros textos, estão cheios de referências a
visitas com o propósito de edificação dos crentes.
Por exemplo,
1. I Coríntios 16:5-9: “Irei ter convosco por ocasião da minha passagem pela Macedônia, porque devo
percorrer a Macedônia. E bem pode ser que convosco me demore ou mesmo passe o inverno, para que
me encaminheis nas viagens que eu tenha de fazer. Porque não quero, agora, ver-vos apenas de
passagem, pois espero permanecer convosco algum tempo, se o Senhor o permitir. Ficarei, porém, em
Éfeso até ao Pentecostes; porque uma porta grande e oportuna para o trabalho se me abriu; e há muitos
adversários.”
2. I Ts. 2:1 “Porque vós, irmãos, sabeis, pessoalmente, que a nossa estada entre vós não se tornou
infrutífera;”; e,
3. I Ts. 3:10 “Porque, quando ainda convosco, vos ordenamos isto: se alguém não quer trabalhar, também
não coma.”
Podemos observar que o trabalho de Visitação Eclesiástica não é um prática posterior a vida da igreja
primitiva.
Alguém pode afirmar: “Por que adotar uma prática que existe poucas referências históricas na vida da
igreja dos primeiros séculos?” Mas, isso não é de se admirar porque foi um período de poucos registros
históricos que temos conhecimento. O historiador Justo Gonzáles em seu livro “A era dos gigantes”,
referindo-se a Eusébio de Cesaréia diz: “Se Eusébio não tivesse dedicado grande parte de sua vida para
escrever a História Eclesiástica, pouca coisa saberíamos dos primeiros séculos da história da igreja. Foi
Eusébio quem compilou, organizou e publicou quase tudo que sabemos nos primeiros séculos da
existência da igreja.” Destaco que o propósito de Eusébio ao escrever sua obra foi de narrar os
acontecimentos da vida da igreja com o propósito mais apologético. Ele quis mostrar que a fé cristã
estava enraizada nas promessas anunciadas no Antigo Testamento. Portanto, não quer dizer que a
prática da visitação eclesiástica não acontecia. Uma prova de sua existência é que no quarto século
havia já um padrão regular de visitação nas igrejas por regiões chamadas de dioceses (o território sob
a jurisdição de um bispo ou colegiado de bispos). Tais visitas eram feitas por bispos ou seus
representantes na tradição ortodoxa oriental. E, nos séculos posteriores, especialmente na igreja
ocidental, essas visitações se tornaram cada vez mais um caráter hierárquica (Domínio de igrejas sobre
outra igrejas). Alguns defender que a motivação foi o combate as heresias que ao longo dos anos estava
afetando as crenças cristãs. Mas, o que não há dúvida é que trouxe um distanciamento do propósito dos
primeiros séculos.
Indo agora para o início do século XVI, as visitações haviam se transformado em inquéritos judiciais ou
ocasiões em que o clero subjugavam igrejas. É compreensível que os reformadores viram, inicialmente,
as Visitações Eclesiásticas como parte de um sistema corrupto que precisava de renovação. Apesar dos
primeiros questionamentos, Martinho Lutero acabou pedindo ao Eleitor da Saxônia que exigisse que
fossem feitas visitações nas igrejas e nas escolas em todo Palatinado.
O historiador W. Walker em seu livro “A Historia da Igreja Cristã” diz: “os visitadores foram nomeados pelo
Eleitor para investigar a doutrina dos cléricos e a conduta com base nos artigos elaborado por Felipe
Melanchthon em 1527 e ampliado no ano seguinte ”.
O foco nesses artigos era a “doutrina e a vida dos cléricos”, mas o documento incluía áreas como
confissão, disciplina e liturgia. A “Constituição” também previa a nomeação de “superintendentes”, que
visitavam igrejas anualmente não só na Alemanha, mas em todo o mundo luterano. Um certo traço
hierarquico permaneceu mas seu propósito de fortalecer as congregações foi em grande parte restaurada.
O Rev. W. W. J. Van Oene em seu livro “With Common Consent. A practical guide to the use of the
Church Order of the Canadian Reformed Churches” diz: “Pouco depois da Reforma, a situação em muitas
igrejas era caótica. Muitos ministros eram ignorantes, e isto era de grande preocupação para aqueles que
desejavam que as igrejas seguissem o curso que estava de acordo com a Palavra de Deus. Assim,
podemos entender que maneiras e meios foram buscados para corrigir deficiências e remover elementos
errados nas várias igrejas.”
Progressos ocorreram em outras regiões onde a Reforma floresceu. João Calvino começou o trabalho de
enunciar os princípios da política da Igreja Reformada na reforma em Genebra. Muitos desses princípios
podem ser encontrados em sua obra: Institutas da Religião Cristã. Esses princípios foram colocados em
prática na nova Ordem da Igreja que foi preparada para a igreja em Genebra. Eles foram ensinados na
Universidade de Genebra, onde estudantes de toda a Europa aprenderam e os levaram para as terras
onde a reforma calvinista havia se espalhado. Homens como Beza, John Lasco, John Knox, Andrew
Melville e Olevianus levaram o sistema reformado e presbiteriano de governo da igreja para os confins da
Europa.
Na Escócia, John Knox instituiu um ofício de "superintendentes", que visitavam as igrejas para garantir um
desenvolvimento saudável da vida da igreja. Sua ideia era que o ofício deveria cessar assim que houvesse
um número suficiente de pregadores.
Em grande parte devido às influências episcopais, a prática assumiu uma forma e caráter mais permanente,
e, mais uma vez, se via traços de hierarquia e até intromissão nos assuntos das igrejas locais.
A tentativa de evitar a hierarquia na Visitação Eclesiástica, teve maior preocupação nas igrejas reformadas
da França e nos Países Baixos.
O Sínodo de Emden (1571), um importante Sínodo para as igrejas reformadas, estabeleceu as normas
eclesiásticas importantes para a vida da Igreja. Este sínodo guiou a igreja ao que temos como Ordem da
Igreja. O Sínodo enfatizou que cabia a cada igreja local regular seus próprios assuntos. Mas eles também
estavam conscientes da herança comum e da vida das igrejas como um todo. E buscaram uma Ordem da
Igreja baseada na Palavra de Deus que era uma confissão comum reconhecida por todas as igrejas e que
preservava a autonomia de cada uma delas. Tal sínodo afirmou o caráter presbiterial da Igreja Reformada e
organizou igrejas dentro de uma região geográfica em "classis" (podemos compará-los com os concílios
regionais). No Sínodo de Emden, outras importantes decisões foram tomadas como por exemplo: foi
adotada a Confissão de Fé Belga de 1561 e foi aprovado o uso do Catecismo de Heidelberg nas
congregações de língua holandesa. Um importante princípio que norteou as decisões do Sínodo foi:
“Nenhuma Igreja dominará, de forma alguma, sobre outras Igrejas, e nenhum oficial sobre outros oficiais.”
Enquanto os regulamentos adotados em Emden permaneciam em vigor, outros sínodos foram convocados
e realizados e tais Sínodos fizeram acréscimos e revisões aos princípios de Emden. Temos uma lista dos
sínodos importantes: 1) Dordrecht - 1574 e 1578; Middelburg – 1581; Den Haag – 1586; Dordrecht -
1618-1619. O Sínodo de Dordrecht 1618-1619, adotou a Ordem da Igreja que é substancialmente a que
temos hoje nas IRB.
Desta forma, as igrejas Reformadas procuraram retornar a prática da igreja primitiva. Elas fazem isso
organizando visitas anuais as igrejas como o propósito de ajudar igrejas locais e oficiais que compõem
aquela região. Tal prática de Visitação Eclesiástica reconhece que a igreja local não é uma ilha em si
mesma. E defende a idéia de que os oficiais das igrejas locais não são funcionários que têm que
responder aos seus superiores, mas trabalham o objetivo de cooperação mutua entre igrejas.
Além disso, os visitadores eclesiásticos são os “ouvidos” dos membros da igreja que se sentirem
injustiçados por certas decisões por parte pela liderança da igreja. Desta forma, as congregações
têm uma forma construtiva de lidar com as tensões que possam surgir.
2. O que diz o Regimento das IRB sobre a visitação eclesiástica?
Visitação Eclesiástica - Artigo 37 do Regimento das IRB
Um concílio autorizará anualmente dois ministros da palavra, dos mais experientes e capacitados, a
fazerem visitas eclesiásticas em todas as congregações. Um deles pode ser um presbítero experiente.
O objetivo da visita eclesiástica é:
Contribuir, com bons conselhos, para a paz, a edificação e o bem-estar das igrejas de Cristo.
Os visitadores:
A. Perguntam se:
• Tudo está sendo feito conforme a palavra de Deus;
• Se os oficiais, juntos e cada um individualmente, cumprem fielmente os seus deveres;
• Mantêm o regimento das igrejas de maneira apropriada;
• Promovem a edificação da congregação com seus conselhos e atos, da melhor maneira possível.
B. Admoestam Oficiais que:
• Forem negligentes em algum respeito.
C. Apresentam ao próximo concílio das igrejas:
• Relatório(s) por escrito de cada visita.
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3. Mais ensinamentos sobre a Visitação Eclesiástica
a. A natureza das visitas eclesiásticas
É importante destacar que a Visitação Eclesiástica é de natureza positiva e deve ser considerada e
realizada como parte de um cuidado mútuo das igrejas que compõem uma região. Quando conduzida no
espírito de ajuda fraternal e mútua, torna-se uma prática bem-vinda e valiosa para promover a unidade
das igrejas em vida e doutrina cristã.
b. O número de visitadores eclesiásticos
O número de visitadores eclesiásticos é deixado ao critério dos concílios e é provável que seja
determinado por fatores como o número de igrejas nos concílios e a localização geográfica das igrejas.
c. Qualificações dos visitadores eclesiásticos
Como os visitantes da igreja são chamados para dar conselhos e monitorar a fidelidade dos outros
oficiais, é importante que pessoas experientes sejam escolhidas para tal responsabilidade. Que eles
tenham capacidade de fazer boas perguntas, ouvir bem, dar bons conselhos, manter a calma em crise,
encorajar e agir como um seguidor maduro de Jesus.
Observação: A nomeação de presbíteros capazes não deve ser negligenciada.
d. Freqüência das visitas eclesiásticas
Embora o regimento da Igreja especifique que serão feitas visitas anuais, a frequência das visitas podem
acontecer mais de uma vez ou, quantas visitas serem necessárias.
e. Relatórios dos visitadores eclesiásticos
Os visitadores eclesiásticos devem apresentar um relatório escrito do seu trabalho. Em alguns lugares,
esses relatórios são mantidos em pastas de arquivo e são entregues a novas equipes de visitadores
eclesiásticos assim que são nomeados. Esta prática contribui com uma medida de continuidade e pode
ser útil tanto para os visitadores como para os conselhos.
f. As igreja são livres para chamar ou não os visitadores sempre que surja necessidade.
Os conselhos não se limitem a acionar apenas os visitadores eclesiásticos para aconselhamento. Há
outros que podem ser consultados quando surge uma necessidade específica de ajuda. O conselho é
responsável por qualquer decisão tomada. O aconselhamento dos visitadores eclesiástico exige um
relatório para o concílio, o concílio pode aprovar ou desaprovar os conselhos dados.
4. Do que tratam as perguntas das Visitações eclesiásticas?
Com a finalidade de auxiliar as igrejas e os visitadores eclesiásticos, foi elaborado um “Guia para a
Condução das visitações eclesiásticas”. São perguntas que devem ser respondidas pelo Conselhos.
Por exemplo:
1. Perguntas introdutórias:
Como foi a preparação para a visitação? O conselho anunciou a igreja que em tal data aconteceria a
visitação? Se há membros que gostariam de falar com os visitadores? Se as perguntas já foram
discutidas numa reunião do conselho? Todos os oficiais estão presentes a visitação, se não, por que não?
2. Perguntas sobre os oficiais:
Quantos oficiais há na Igreja? Há bastante oficiais para cuidar da Igreja? De que maneira os oficiais de
Cristo são escolhidos? Existe um regimento local em que está escrito como isso deve ser feito? Como
está com o serviço do Ministro da Palavra? E como está com a vida familiar dele? O Ministro da Palavra
pode fazer o trabalho dele sem preocupações? Como é controlado? Como está com o trabalho dos
presbíteros e dos diáconos? E como está com a vida familiar deles? Como está a comunicação com as
autoridades civis?
3. Perguntas sobre as Assembleias Eclesiásticas:
O Conselho reúne-se regularmente? Também com os diáconos? Os diáconos se reúnem independente
do conselho ou são incluídos no Conselho? As tarefas no conselho são bem divididas? Quem controla a
administração da Igreja: sobre os membros etc.?Quem controla as finanças na Igreja. E como o conselho
controla esse trabalho? O Conselho teve reuniões com a Igreja? Sobre o quê? O Conselho manda
regularmente delegados para o Concílio? Como o Conselho divide esta tarefa entre os seus oficiais? O
Conselho respeita as decisões tomadas nos Concílios? O Conselho informa a congregação sobre essas
decisões?
4. Perguntas sobre os Cultos Públicos e os Sacramentos:
Há quantos cultos no Domingo? Cada Domingo é pregado sobre o Catecismo? Como é a liturgia
geralmente?Há dias de Comemoração? Como são celebrados? Quantas vezes o sacramento do batismo
foi administrado este ano? Como os pais cumprem a sua promessa para instruir seus filhos na doutrina
da Palavra de Deus? Quantas vezes por ano a santa ceia é celebrada? Houve casamentos no ano
passado? Todos os casamentos foram celebrados na Igreja conforme a Palavra de Deus? Como está
com a comunhão dos santos na Igreja? Os membros são geralmente ativos na Igreja?
5. Perguntas sobre a disciplina eclesiástica:
Houve pessoas disciplinadas? Como está com a disciplina fraternal? Houve suspensão ou Deposição de
oficiais? Como a censura fraternal entre os oficiais funciona? Há domínio de outra Igreja da Confederação
sobre esta Igreja? Ou de algum oficial sobre outros oficiais?

Postado com a autorização do autor

Pastor Flávio Silva é ministro reformado servindo atualmente na Igreja Reformada de Maceió.

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